Publicado em: 15 de maio de 2017 10h05min / Atualizado em: 15 de maio de 2017 11h05min
Desde 2014 participando de fóruns e espaços de discussões sobre desenvolvimento urbano, o professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó, Christy Ganzert Pato - depois de integrar a delegação oficial do Brasil na III Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, realizada em Quito, em setembro de 2016 - foi recentemente convidado pela ONU para integrar uma comissão de especialistas que auxiliará a CEPAL na formulação de um Plano de Ação Regional para a América Latina e Caribe, relativo à implementação da Nova Agenda Urbana da ONU.
Na entrevista abaixo, o professor explica os motivos da sua participação, os debates travados sobre o tema e como as cidades devem incorporar a Nova Agenda Urbana.
UFFS – Campus Chapecó: Como se deu o convite para integrar essa comissão de especialistas encarregados de auxiliar a ONU?
Christy Ganzert Pato: Em 2014 eu participei, como integrante da Delegação da Prefeitura de São Paulo, do Fórum Mercocidades. A rede, fundada há 22 anos, congrega cerca de 320 governos locais de Argentina, Brasil, Paraguay, Uruguay, Venezuela, Chile, Bolívia, Equador, Peru e Colômbia, totalizando pouco mais de 120 milhões de habitantes em seus territórios. Infelizmente, em Santa Catarina apenas as cidades de Florianópolis, Joinville e São Bento do Sul integram a rede. No Rio Grande do Sul temos 18 cidades integrando a rede e no Paraná outras 5. Uma das finalidades da rede é promover o intercâmbio de experiências e projetos, bem como incentivar o protagonismo das cidades dentro da estrutura do Mercosul, firmando parcerias, convênios e demais mecanismos de cooperação econômica, cultural e de intercâmbio técnico.
Quando assumi a Presidência da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, em 2015, fui indicado pelo Presidente da Câmara como o ponto focal da Câmara nas discussões que então se iniciavam no âmbito de uma nova rede de cooperação, denominada MSur, que pretendia agregar não apenas os representantes dos poderes executivos das cidades do Mercosul, mas também representantes dos poderes legislativos. Participei então de uma série de encontros e fóruns, realizados no Equador, Uruguai, Chile e Brasil, colaborando na formulação de diretrizes comuns a serem enfrentadas pelas cidades da região. Ao final de 2015 firmamos um Termo de Cooperação Técnica entre a Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo e a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (CEPAL).
Em outubro de 2016, em Quito, teríamos então a tão aguardada III Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, mais conhecida como Habitat III. Ainda que eu não tivesse participado das conferências preparatórias da Habitat III, já há anos participava ativamente de fóruns nos quais várias das questões que foram incorporadas na Nova Agenda Urbana eram debatidas. Em função disso fui convidado pela Prefeitura Municipal de São Paulo a integrar a delegação do município. Ao mesmo tempo, dado o espírito da Habitat III, de deslocar para os entes subnacionais o protagonismo frente aos novos desafios colocados ao desenvolvimento urbano, fui também convidado a integrar a delegação oficial do Brasil na III Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, na condição de um dos poucos representantes de poderes legislativos locais.
Creio então que o convite para esta comissão surgiu em função da minha participação e colaboração acumuladas nesses últimos 3 anos. Acompanhei de perto as discussões técnicas realizadas nos vários organismos internacionais e conheço bem os dilemas de gestão a serem enfrentados pelas cidades. Este grupo de 8 especialistas latino-americanos, para o qual fui convidado, está encarregado de auxiliar a CEPAL na formulação de um Plano de Ação Regional para a América Latina e Caribe, relativo à implementação da Nova Agenda Urbana da ONU, mais especificamente com o tema "marcos legais urbanos melhores e mais transparentes"
Qual a importância dessas discussões para as cidades e para o país?
A primeira conferência da ONU a abordar seriamente o tema da urbanização ocorreu em 1976, em Vancouver, no Canadá. Esta conferência ficou conhecida como Habitat I, e a partir dela a UN-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) passou a contar com um arranjo institucional próprio, não mais subordinado ao PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Em 1996, vinte anos depois da primeira conferência da Habitat, foi realizada em Istambul, Turquia, a segunda conferência, conhecida como Habitat II. Nesta conferência, o balanço sobre os avanços nas políticas de urbanização sustentável levaram à construção dos parâmetros que, 4 anos depois, embasariam a pactuação dos chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), acordados por todos os países membros da ONU em 2000. Em 2002, a Assembleia Geral da ONU elevou a Habitat à condição de Programa do Sistema das Nações Unidas, assumindo então o formato institucional atual. Com uma estrutura mais robusta, a UN-Habitat passou a contar também com parceiros sub-nacionais, como cidades e províncias.
A importância do tema tratado pela UN-Habitat foi tomando corpo dentro do sistema ONU, pois os objetivos de erradicação da pobreza, de melhoria nos índices de educação e saúde, de proteção ao meio-ambiente, de mitigação dos efeitos de alteração climática, etc., cada vez mais passaram a ter o território como premissa epistêmica. Tal acúmulo de novas perspectivas de desenvolvimento assentadas no território levaram à pactuação (na Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em NY em 2015) dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), em substituição aos ODMs. No mesmo ano de 2015, em paralelo, ocorreram várias conferências preparatórias para a Habitat III, realizada em Quito no ano passado.
O que melhor denota a importância dessas discussões para as cidades é, portanto, a premissa já largamente incorporada pela ONU de que a efetividade na consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável depende integralmente do território. Como bem resumiu o então Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, em sua fala de abertura da Habitat III: hoje, quem está na linha de frente do combate aos problemas cotidianos de nosso modo de viver não são mais os dirigentes dos Estados-Nação, mas os prefeitos e representantes locais, e, portanto, a cidade deve ser nossa trincheira de atuação.
Como o Plano de Ação Regional para a América Latina e Caribe conseguirá ter formulações que contemplem cidades e regiões distintas e que, obviamente, têm peculiaridades?
Todos os 175 compromissos pactuados no documento intitulado Nova Agenda Urbana, aprovado por unanimidade na Habitat III, já tiveram que enfrentar, logo de saída, essa questão. Os princípios foram formulados a partir das inúmeras experiências locais tidas como exemplares e passíveis de serem transladadas a outras realidades. Tomemos, por exemplo, o princípio 137 da Nova Agenda Urbana, que eu considero um dos mais importantes: todos os países se comprometem a promover "as melhores práticas de captura e partilha do incremento no valor da propriedade e da terra resultantes de processos de desenvolvimento urbano, de projetos de infraestrutura e de investimento s públicos. Medidas como políticas fiscais relacionadas aos ganhos poderão ser implementadas, conforme a necessidade, para evitar a sua captura exclusivamente privada, bem como a especulação imobiliária e fundiária".
Em outras palavras, se um governo local promove alguma intervenção urbana, tal como a criação de um parque numa área central, é claro que teremos a imediata valorização de todos os imóveis e terrenos vizinhos ao parque. O que o princípio pactuado tem como premissa é muito simples: é justo que um investimento público se converta em valorização exclusiva de determinados imóveis e terrenos? O investimento público já melhora, por definição, as próprias condições de vida daquele bairro. É justo que ainda por cima os moradores se beneficiem de um ganho patrimonial decorrente do investimento público? Como fazer para que parte desses ganhos patrimoniais seja revertida como benefício a outras áreas da cidade, carentes de investimentos públicos? O que o Plano de Ação Regional para a América Latina pretende é apenas delimitar de forma mais estratégica quais os princípios a serem almejados primeiro, com vistas a pavimentar o alcance dos demais princípios e objetivos do desenvolvimento urbano sustentável.
Embora sejam seis eixos de ação, eles devem se interligar. Mas, qual o ponto inicial? Qual deve ser o primeiro olhar das cidades buscando o desenvolvimento sustentável?
Aqui talvez você encontre de forma mais nítida a resposta à sua pergunta anterior. Em nossa primeira reunião, realizada há três semanas, talvez o primeiro ponto de divergência a sobressair entre os oito integrantes do grupo de especialistas convidados pela ONU tenha sido justamente com relação ao ponto inicial a conduzir a implantação da Nova Agenda Urbana segundo cada realidade territorial. É um debate bastante interessante e creio que ainda teremos algumas boas conversas sobre o tema.
Quais os entraves para que a Nova Agenda Urbana seja aceita e implantada nos territórios?
Esse é o ponto sobre o qual eu me debruço, desde que fui convidado a participar dos primeiros fóruns da rede Mercocidades. O grande problema do sistema ONU é a completa ausência de mecanismos de enforcement, à exceção das matérias relativas ao Conselho de Segurança. Se um país não seguir as recomendações que ele mesmo concordou em cumprir não há qualquer mecanismo punitivo. Se, por exemplo, eu deixar de promover mecanismos de captura e partilha das valorizações de propriedade decorrentes do investimento público, qual será minha punição? Nenhuma. Sobre esse tema, minha visão, a qual eu já debati na Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e na CEPAL, é a de que precisamos criar mecanismos que internalizem os ODSs à lógica eleitoral.
Qual a régua objetiva que um eleitor tem para aferir se determinada política pública é ou não a mais adequada para enfrentar os desafios colocados para o século XXI? Nenhuma. Se um candidato A diz que tal política pública é boa, e um candidato B diz que ela é ruim, a única régua disponível para a decisão do eleitor é a mera afinidade ideológica com tal ou qual candidato, e não a avaliação objetiva sobre as consequências programáticas de um e de outro. O universo das políticas públicas, ademais, é extremamente complexo e cheio de problemas contraintuitivos (por exemplo, a demonstração científica de que a diminuição da velocidade máxima de uma via congestionada aumenta sua velocidade média).
Como fazer, portanto, para que as políticas públicas decorrentes dos princípios adotados na Nova Agenda Urbana saiam vitoriosas dentre as disputas dos pleitos municipais, ainda mais quando seus resultados são de longo prazo - longe, portanto, do escopo da perversa lógica de curto prazo que pauta os processos eleitorais? Precisamos, pois, de sistemas confiáveis de indicadores municipais, os quais podem ser facilmente parametrizados em função dos ODSs e levados ao eleitor de forma transparente e didática, permitindo-lhe entender melhor as consequências de cada escolha política. E aqui entra o papel fundamental das universidades e centros de pesquisa que, ao criarem observatórios de políticas públicas, sejam capazes de sistematizar esses dados e levá-los a público. Mas aí caímos também num problema circular: muitos municípios sequer seguem princípios de transparência da informação ou mesmo possuem quadros técnicos capazes de produzir e sistematizar a miríade de dados municipais.
Como cidades como Chapecó podem implementar essa nova agenda urbana? Qual(is) seria (m) o (s) primeiro (s) passo(s)?
O primeiro passo é que a cidade se aproprie do documento. O prefeito, seus secretários, os vereadores, os jornais locais, os comentaristas, os formadores de opinião e, claro, a universidade, todos devem transformar os princípios da Nova Agenda Urbana em pauta pública. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: tome-se, por exemplo, o tema da violência urbana. Se nenhum jornal, nenhum vereador, nenhum âncora de programa de televisão, se absolutamente ninguém debatesse publicamente a questão da violência, ela se tornaria uma prioridade? O agenciamento e na formulação de políticas públicas?
Chapecó passou recentemente por debates acerca de seu Plano de Mobilidade. Olhando o documento final aprovado pela Câmara, notei que a maior parte das questões levantadas pela Nova Agenda Urbana não estão contempladas no Plano aprovado. Felizmente ele deverá ser revisado em cinco anos. Eis, pois, uma boa oportunidade para que o debate seja reaberto de forma a já incorporarmos os princípios definidos na Nova Agenda Urbana.
Um outro passo importante é internalizar os conceitos da Nova Agenda Urbana junto ao corpo técnico da Prefeitura. Como podemos cobrar da Prefeitura a construção de novos marcos legais e novos projetos se seu corpo técnico também não estiver em sintonia com a Nova Agenda Urbana? E quando digo estar em sintonia não me refiro apenas a ter cursos de capacitação para os quadros da Prefeitura (outra frente importante de colaboração a ser desempenhada pela Universidade). Me refiro a coisas mais simples, relativas ao dia a dia de operação de uma política pública. Se você é um técnico operando na ponta de uma política de habitação, por exemplo, você estará acostumado a operar com determinados indicadores e metas. Mas como saber se esses instrumentos de avaliação estão permitindo atingir ou não os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável? Nós precisamos reorganizar por completo nossos indicadores municipais, com bases de dados disponíveis em formato aberto, que permitam à sociedade civil também manipular esses dados, e com metodologias e ponderações que os aproximem das medições necessárias para a consecução dos objetivos da Nova Agenda Urbana.
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