A geógrafa e professora da UNESP – Presidente Prudente, Maria Encarnação Beltrão Sposito, esteve na UFFS – Campus Chapecó para falar sobre cidades médias e recebeu a Assessoria de Comunicação para uma entrevista em que abordou questões sobre redes urbanas, metrópoles e por que Chapecó, para ela, é uma cidade média. Confira!
1. Como começaram os estudos sobre as cidades médias? De onde vêm esses estudos e por que estudar cidades médias?
R: Bom, no Brasil esses estudos começaram no finalzinho dos anos de 1960 e se desenvolveram nos anos de 1970, com dois professores. Um professor da Universidade Federal de Minas Gerais, que é Osvaldo Amorim, e uma professora da Universidade de São Paulo, que é a Maria Adélia de Souza. Depois, durante os anos de 1980, esse interesse pelas cidades médias praticamente declinou no Brasil, tendo se realimentado, vamos dizer assim, nos anos de 1990, durante um simpósio de Geografia em Presidente Prudente, que ocorreu em 1999, e nós acrescentamos um dia fazendo uma jornada dos pesquisadores em Cidades Médias. Aquilo era muito embrionário, apenas se reuniram pessoas que tinham interesse, vontade de estudar essas cidades, e aí se foi tentando desenvolver essa ideia e no que concerne à rede de pesquisa na qual eu trabalho, a Rede de Pesquisadores sobre as Cidades Médias (Recime), ela foi criada no finalzinho do ano de 2006, e aí se agregou um número maior de pesquisadores, de programas de Pós-Graduação, e posso dizer que nesses quase dez anos de trabalho já temos algum resultado acumulado, embora não sejamos os únicos que estudamos cidades médias. Trata-se de uma rede sediada na Universidade Federal de Pernambuco, que reúne gente da Economia, da Sociologia, associada ao Centro Internacional Celso Furtado, que também desenvolve pesquisas, e outras pessoas que não estão associadas a nenhuma rede e que trabalham com o tema.
2. O que são redes urbanas?
R: Redes urbanas são conjuntos de cidades que têm relação entre si. Um conjunto de cidades em que entre elas há uma divisão interurbana de trabalho, tão forte, tão significativa, que o grau de dependência se estabelece de tal forma que cada uma das cidades não poderia viver por si. Praticamente hoje, no mundo todo, se pode dizer que há redes urbanas e conjunto de redes urbanas que formam os sistemas urbanos. Lá no passado longínquo, no começo da urbanização não, porque as cidades eram cidades-estados, uma cidade comandava e extraía riqueza de um dado território e ali se estabalecia um poder político, se desenvolvia a economia e essas cidades podiam viver independentes umas das outras. Mas, no desenvolvimento do capitalismo, a divisão de trabalho muito intensa, vai gerando também essa divisão do espaço. Essa interdependência espacial que vai se consubstanciar, principalmente, em função de uma economia que cada vez mais seja de larga escala. Então claro, se aqui em Chapecó, há empresas industriais como a BRF, que vai distribuir alimentos para o país todo, esse é o modo como Chapecó participa da divisão interurbana do trabalho e vai criando “solidariedades” territoriais que colocam essas cidades em relação entre si.
3. Como as cidades médias são pensadas dentro da rede urbana?
R: Quando começam os estudos sobre cidades médias, com uma certa ênfase na França, depois da 2ª Guerra Mundial, se associou muito a ideia de cidade média com duas outras ideias que ganhavam força no pensamento geográfico naquele momento. Uma primeira ideia, a de cidade regional, de região, portanto a cidade média seria aquela que comandaria a região. Depois, no final dos anos de 1950, início de 1960, se associou muito a ideia de cidade média com a ideia de região polarizada, cidade média como um polo que comanda. Mas de qualquer maneira, como num caso quanto no outro, se pensarmos na rede urbana, as cidades médias são aquelas do meio, aquelas que desempenham papel de intermediação. No caso brasileiro, se faz uma distinção entre cidades de porte médio, que são as que têm um determinado tamanho populacional, e cidades médias. Porque você pode ter uma cidade porte médio, que pertence a uma região metropolitana, ela tem um tamanho médio, mas ela não exerce esses papéis de comando regional, justamente por pertencer a uma área metropolitana.
Quanto mais você se distancia das metrópoles, mais ficam claros esses papéis de comando regional dessas cidades, como é o caso da cidade onde eu moro, Presidente Prudente, é o caso de Chapecó também na minha opinião, e tantos outros exemplos no Brasil. Desse ponto de vista, cidade média é pensada como uma espécie de elo entre aquilo que é o comando da hierarquia urbana e a base, quer dizer, as cidades pequenas, pelo tamanho, elas não têm bens e serviços em diversidade muito grande, então elas vão ser servidas, seus moradores também vão ser servidos desses bens e serviços nessas cidades intermediárias, já que essa população está distante da metrópole e não vai poder ascender à metropóle para serviços, como serviços de saúde, ensino superior, enfim.
Hoje esse conceito, essa ideia, essa visão já está mais complexa porque, com a globalização, empresas e agentes econômicos que estão numa cidade que está num estrato intermediário da rede podem se relacionar diretamente com a escala internacional quebrando aquela ideia de hierarquia – a cidade pequena se remete à média, a média se remete à grande, à metropolitana. Então, no caso brasileiro, a grande metrópole economicamente falando é São Paulo, hoje já há empresas que estão em cidades desse estrato intermediário que vão se relacionar com cidades, empresas que estão em outros países do mundo, quebrando essa hierarquia. O que um pesquisador do nosso grupo, Márcio Catelan, chamou de heterarquia, quer dizer, relações que são heterárquicas, elas não anulam as hierárquicas, que continuam a acontecer, por várias razões. Primeiro porque as metrópoles continuam sediando muitas empresas e também porque certos tipos de serviços continuam e tem que se organizar desse modo, como a administração pública. Ela ainda funciona, tem o governo federal, o governo estadual, o estadual tem regiões, as mesorregiões do IBGE, ou as regiões administrativas de cada Estado, então serviços de saúde, de educação, enfim, de apoio à agricultura por parte do serviço público, vão se organizar hierarquicamente, ou mesmo outros serviços, como abastecimento alimentar, também vão se organizar hierarquicamente, mas você já tem, no entanto, outra natureza na oferta de bens e serviços que vai funcionar fora dessa hierarquia.
Por exemplo, a partir dos anos de 1990, houve uma reengenharia no mundo todo do sistema bancário, o Brasil então recebeu a entrada de bancos internacionais, tipo Santander, tipo HSBC. Um banco desses vem e se instala numa cidade como Chapecó. Chapecó vai se ligar direto com Madri, ou, enfim, direto com a sede do HSBC na Holanda, sem passar por São Paulo. E mesmo em situações como a cidade de vocês que tem uma empresa tão grande, que não tem apenas o objetivo de um abastecimento regional, ela tem um abastecimento de escala nacional, é uma empresa exportadora, então ela também quebra esse tipo de relação hierárquica. Então, hoje há elementos novos que não anulam os anteriores, mas que se agregam com os anteriores, e que tornam ainda mais importante entender essas cidades. Não porque elas passem a ser mais importantes que as metropolitanas, de maneira alguma, e nem porque elas passem a ter uma autonomia, também nada disso. Ao contrário, aumenta, às vezes, o grau de articulação delas com outros espaços e, portanto, perda de autonomia, perda de independência.
É provável que durante muito tempo Chapecó viveu sob o comando somente dos grupos econômicos que estavam aqui na região, os fundadores da cidade. Hoje, esses grupos têm que competir ou fazer aliança com outros que chegam, fazendo aquilo que um geográfico chamou de “saltos escalares”, quer dizer, as empresas que estão aqui, ou elas vão se render, vão ser compradas, absorvidas, ou elas vão ter que saltar escalas e tentar ampliar a cobertura espacial aos seus negócios e, portanto, vão para aquele ramo que elas representam da centralidade para Chapecó, por exemplo.
4. É possível ter região metropolitana em cidades médias?
R: Há uma autora que eu gosto muito, a Rosa Mouro, que usou uma expressão num texto que eu também gosto muito. O Brasil desde que mudou a exigência para se criar regiões metropolitanas, tinha que se aprovar isso no Congresso Nacional, descentralizou essa decisão para as Assembleias Legislativas, muitas delas criaram regiões metropolitanas e ela cunhou uma expressão que eu acho muito boa: são regiões metropolitanas, sem metrópole. Porque uma coisa é você ir na Assembleia Legislativa e convencer os deputados que aquela região é poderosa, que aquela região está crescendo, que ela está se desenvolvendo e conseguir o número de votos para aprovar. Outra coisa, de fato, é essas cidades terem um papel metropolitano. O que é o papel metropolitano?
É um papel de comando na rede urbana, que é dada para cidades que estão no topo de uma dada hierarquia, que compreende, para o caso brasileiro, grandes regiões, como as metrópoles regionais brasileiras, como Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, ou uma abrangência nacional como o caso de São Paulo ou Rio de Janeiro.
Fora dessas escalas, nem o IBGE reconhece. O IBGE faz uma classificação e diz: nós temos três grandes níveis, o nível das metrópoles, que também está subdividido, grande metrópole nacional – São Paulo – e duas metrópoles nacionais, que são Brasília e Rio de Janeiro. E depois, o que eles chamam das capitais regionais, que entram todas essas cidades e entram, inclusive, algumas que são capitais de estados da Federação, como João Pessoa, que, mesmo sendo capitais de Estado, não alcançam um controle metropolitano.
Então, pra existir metrópole, precisa existir esse comando de grande abrangência e precisa também um outro aspecto muito importante, que é uma vida social complexa, em que vários elementos entram, por exemplo, o anonimato. A ideia de anonimato, a ideia de uma sociabilidade mais complexa, que ainda não é típica de cidades como essas. Eu não adotaria a ideia de metrópole, mas isso é um debate candente. Então, politicamente se criam regiões metropolitanas, mas cientificamente, se você for pegar literaturas internacionais e mesmo pesquisadoras brasileiras, não é muito fácil defender essa ideia.
5. A professora Maria Adélia Aparecida de Souza considerou que Chapecó é uma metrópole. O que a senhora pensa a respeito?
R: Eu não concordo com ela, eu discordo. Acho que o Estado de Santa Catarina é um Estado muito peculiar, porque é um dos estados da Federação que mais avançou, não é o único, rapidamente para aprovar regiões metropolitanas. E, no entanto, ele é um Estado brasileiro que não tem nenhuma metrópole. Nem Florianópolis é propriamente uma metrópole, é uma cidade importante, grande, que tem papéis, mas não é uma cidade de comando. Até porque todo o modo como foi ocupado o Estado de SC, com base num peso muito grande na pequena e na média propriedade, gerou muitas cidades regionais importantes, Blumenau, Joinville, Criciúma, Chapecó, enfim, e esse conjunto de cidades regionais importantes é bom para o Estado.
Às vezes você imagina que seria bom ter uma metrópole, às vezes não, pois a existência de uma metrópole é um processo de absorção muito grande da riqueza do restante do Estado e haver mais cidades regionais importantes significa uma distribuição melhor das condições de vida urbana. O interessante é que no caso de Santa Catarina é um comando regional com complementaridade, algumas são mais industriais, outras portuárias, de turismo, outras de turismo e político-administrativo e isso é muito bom, porque você tem uma melhor distribuição da população no território e não chega a ter espaços urbanos tão complexos que sempre são mais difíceis de serem administrados.
Então, eu não concordo, eu busco combinar esses dois planos: o plano do comando político e econômico e esse plano da vida social, a ideia de anonimato, de ausência de controle, de uma vida social complexa, com grupos humanos muito diferentes culturalmente, muito diferentes comportamentalmente, gerando, assim, um espaço, vamos dizer, cosmopolita, que se associa à vida metropolitana. Não sou moradora de Chapecó, mas sei que não tem aqui, como não tem em Prudente, não tem em Marília, em Uberlândia. São cidades ainda que a elite é muito pequena, esse é um outro fator, aquilo que se chama elite econômica e política é composta por um número pequeno proprocionalmente de atores, de famílias, de grupos, que permite que as relações de poder e controle se estabeleçam de um modo muito diferente do metropolitano. Na metrópole você vai ter uma diversidade de atores muito grande, desde movimentos sociais até atores que, enfim, tenham interesses diversos e operam em escalas muito amplas.
6. Como Chapecó está nesse cenário de cidades médias?
Eu considero Chapecó um exemplo muito interessante de cidade média, porque ela corresponde a esse conjunto de características que a gente toma como cidade regional, cidade média. Aqui tem serviços de saúde, serviços de educação, serviços de administração, que vão atender um conjunto grande de municípios, que no caso de Chapecó ultrapassam os limites do próprio Estado de Santa Catarina. Então, ela corresponde claramente a uma cidade que se constituiu desse modo, que se favoreceu inclusive pelo fato de estar distante da capital e das outras cidades que tinham o tamanho maior que ela, como no caso de Blumenau, Joinville e da própria capital, que é Florianópolis. Nesse caso, a distância jogou um papel importante a favor dela, mas ela também desempenha muito bem esses outros papéis sobre os quais eu tenho chamado atenção, que são os seus atores econômicos que estão pulando escalas e estão se articulando em outros planos. E, por isso, ela é uma cidade muito especial.
Esses atores que pulam escalas são afeitos a um ramo principal da atividade, que é o ramo agroindustrial. Hoje é também caracterizado como um circuito espacial do agronegócio. É muito interessante porque é uma industrialização que se baseia no extrativismo da produção agropecuária e mantém esse vínculo entre o rural e o urbano, que eu também considero uma característica forte de cidade média, na metrópole você não vê essa indissociabilidade entre o rural e o urbano; o urbano é tão complexo que ele impera sozinho, as relações com o mundo rural estão distantes daquele espaço.
7. Fale um pouco sobre a Rede de Pesquisa sobre cidades médias – Recime – e sobre o livro sobre Chapecó que está para ser publicado.
Essa rede de pesquisa foi criada no final de 2006, mas na verdade ela começou a trabalhar só em 2007. Hoje essa rede de pesquisa é composta por professores que estão em cerca de 15 universidades brasileiras, distribuídas em todas as grandes regiões brasileiras, e temos alguns participantes estrangeiros. Nós demos início a uma pesquisa, trabalhamos praticamente um ano no desenvolvimento de uma metodologia que foi aplicada em várias cidades ao mesmo tempo para se fazer uma comparação a partir de quatro processos importantes: agronegócios, descentralização de atividade industrial, expansão de comércio e serviços e desigualdades sócio-espaciais – esse que a gente acha que é um processo que tem aumentado muito nas cidades médias. E foram estudadas várias cidades, dez delas já têm os seus resultados publicados e agora acabaram de sair os resultados de mais duas cidades: Chapecó e Dourados.
Um trabalho que foi realizado sob a coordenação da professora Camila Fujita, que era professora da Unochapecó e hoje é professora da PUC de Porto Alegre, mas que contou com a participação intensa do professor Alexandre Matiello, que era da Unochapecó e agora é professor na UFFS – Campus Chapecó, da Cristina Otsuschi, que também era da Unochapecó e agora é da UFFS, da Rosa Alba, enfim, esse grupo de pesquisadores que aplicou essa metodologia e agora vai ter o livro, que pode ser baixado completo no endereço: www.culturaacademica.com.br
Cada livro são duas cidades e, nesse caso, acabou numa coincidência boa que foi Dourados e Chapecó, cidades que tem perfis parecidos, o agronegócio é o carro-chefe da economia para essas duas cidades. O título do livro é “Agentes econômicos e reestruturação urbana e regional – Dourados e Chapecó”.
* Maria Encarnação Beltrão Sposito é professora livre-docente do Departamento de Geografia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente, onde se licenciou e obteve o Bacharelado em Geografia. Seu título de Mestrado foi obtido na mesma universidade, no campus de Rio Claro, e seu Doutorado em Geografia (Geografia Humana) na Universidade de São Paulo (USP). Realizou estágio pós-doutoral em Geografia na Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. Coordena a Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe) e é membro do Grupo de Estudos Urbanos (GEU).