Pesquisadora fala sobre Chapecó antiga e atual e aborda urbanização

Publicado em: 18 de agosto de 2016 14h08min / Atualizado em: 04 de janeiro de 2017 11h01min

O “Seminário de Estudos Regionais sobre o Urbano e o Rural: Chapecó em Foco”, finalizado na quarta-feira (17), teve a presença da geógrafa e pesquisadora Maria Adélia de Souza. Professora da USP, Maria Adélia tem um currículo vasto e atua especialmente na área de Planejamento Urbano e Regional.

Ela, que tem uma história interessante com Chapecó, concedeu a entrevista a seguir para a UFFS. Abordou questões históricas e estudos atuais que vem realizando.

 

A senhora tem uma relação com Chapecó de algum tempo atrás...

Em 1970 e 1971 eu trabalhei no Serfhau – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo do Ministério do Interior do Brasil. Naquela época o Serfhau administrava um fundo de planejamento cujo dinheiro era aplicado parte a fundo perdido nas prefeituras brasileiras e parte era para financiar planos diretores, planos de desenvolvimento urbano. E eu, ao trabalhar neste serviço, fiz uma proposta: mudar a ideia clássica de plano diretor, que era feita pela Arquitetura e pelos urbanistas da Arquitetura, e que a gente precisava introduzir uma análise geográfica regional, inclusive, e sair da técnica urbanística propriamente dita, na lida com a cidade. E propus, e meu chefe da época me autorizou, a fazer de Chapecó um projeto-piloto. Então, Chapecó faz parte da história do planejamento urbano brasileiro por conta deste trabalho que fiz aqui e que, sob certo aspecto, revolucionou a metodologia de elaboração de planos diretores no Brasil. Isso foi em 1972.

 

Em que elementos a gente pode ver essas mudanças na nova concepção de planos diretores?

Acabo de dar uma volta na cidade e se você ler o que proponho no final do termo de referência, eu acertei “na mosca” [risos]. A gente utilizou as teorias da época e já vislumbrava a potencialidade que Chapecó tinha para ser uma importante metrópole regional do Oeste catarinense. Só acho que, hoje, Chapecó tem que reivindicar a condição de região metropolitana. Ela já merece e tem tudo para ser uma região metropolitana. Além de ter feitura, cara de região metropolitana na escala e na localização geográfica no território brasileiro, essa também é uma luta política. Porque a seleção de regiões metropolitanas há muito tempo deixou de ter... aliás, nunca foi o critério técnico ou geográfico que definiu uma região metropolitana. Acho que Chapecó tem a mesma situação de Sobral, no interior do Ceará. Advogo essa tese e saio por aí dizendo que elas têm que ser. Elas servem a grandes regiões que se organizam em torno delas. Em função do conceito de região que hoje se usa – nem todos os geógrafos o usam, mas eu, sim – como uma decorrência do conceito de espaço. Então você tem solidariedades organizacionais, orgânicas, institucionais que envolvem áreas imensas. No mínimo Chapecó deveria pesquisar, mas isto meus colegas devem estar estudando: Chapecó deve manter solidariedades organizacionais que viabilizam aconteceres que trazem para cá pessoas, interesses, recursos de uma área bem mais ampla do que a cidade de Chapecó. Naquela época já tinha: eu assisti uma discussão muito interessante entre o Plínio De Nez e o Atílio Fontana. Ambos eram meus amigos e disputavam palmo a palmo a liderança política e regional. Concórdia naquela época era bem menor. Não sei o que aconteceu com Concórdia depois. Eu defendia Chapecó e o Atílio ficava bravo comigo porque eu estava estudando Chapecó... eu falei 'não é, é a evidência'. Mas tenho muito orgulho de ter sido pioneira nos estudos de Chapecó. Fizemos, naquela época, o que chamamos de termos de referência para o Plano de Desenvolvimento Urbano de Chapecó. Sem nenhuma modéstia, porque também não fiz sozinha, fiz com mais três colegas – eu, que sou geógrafa, um arquiteto, um economista e um administrador de empresas. Nós éramos bem jovens, mas acho que fizemos um trabalho – estava relendo – muito bem feito. Fizemos a primeira planta de Chapecó, que não tinha, “na unha”! Todo mapeamento dos equipamentos e serviços – é uma belezinha. Tenho muito orgulho de ter proposto uma revolução de método na elaboração de plano diretor a partir de Chapecó. E que até hoje não foi superada: pelo contrário. Acho que em muitos casos, os arquitetos e urbanistas que saem das faculdades de Arquitetura e que ainda não aprenderam a usar os estudos geográficos – o que é uma pena, porque enfraquece os planos diretores –, Chapecó não. Foi para além do seu tempo há mais de 40 anos.

 

O que percebeu de Chapecó na década de 70 e quais as impressões da Chapecó atual?

Chapecó da minha época era uma cidadezinha do interior. Tanto é que eu propus – se você for ler o Termo de Referência – que isso aqui seria uma metrópole regional, todo mundo deu risada. E o que é Chapecó hoje? É uma cidade com cara de metrópole. Não é uma cidade regional, é uma metrópole regional. Bonita, bem cuidada, limpa. Tem tudo o que há numa cidade quando cresce ou nas cidades grandes. E tende a empobrecer por conta da natureza do processo de desenvolvimento econômico do mundo de hoje, que é seletivo por conta do uso da tecnologia. A tecnologia usa máquina e não usa gente. Então o desemprego e a pobreza vêm por aí. Vamos ter que achar outro modo de viver ou … [risos], não tem dois caminhos. Mas Chapecó é linda. Quando estive aqui a igreja estava em reforma, hoje há uma bela catedral; avenidas largas, o centro era bem congestionado, parece que agora ele abriu, e as casas de comércio bem de cidadezinha do interior, com uma portinha baixa; não tinha tantos prédios. Fui no alto das torres de TV e ... nossa! A cidade é imensa. É assustador! Cinquenta anos, as cidades crescem! Foi muito emocionante, viu? É como se você carregasse um filho e de repente ele ficou maduro. E aí eu tenho ciúme, porque não consegui acompanhar. Sou uma mãe que foi embora e nunca mais voltou [risos]. Fiquei muito feliz com o convite dos colegas.

 

Falando um pouco do tema da sua palestra: gostaria que comentasse sobre o processo de modernização incompleta e quais as características que países ou regiões têm em comum quando sofrem este processo.

Todos os países pobres jamais conheceram a modernidade. Falar em modernidade em país como o Brasil é mentira. Todas as modernizações são incompletas. Você não recebe nenhum segmento, seja lá qual for, de maneira inteira. Aqui, por exemplo, na agroindústria, deve ter vários pedaços do processo que é necessário trazer de outros lugares. Lembro, na época, que o Plínio De Nez trouxe um veterinário – não sei se da Dinamarca ou da Suécia – para fazer as pesquisas mais avançadas e continuar na liderança da produção de frios e enlatados de qualidade, que era a briga com a Sadia, na época. Porque precisava: você tinha tudo, mas não tinha a pesquisa genética, tem tudo mas não detém um processo de duração do produto. Andei aqui e tem muitas ruas em bairros bons que não são asfaltadas. Tudo isso é modernização incompleta. As redes de esgoto e de água, que são tecnologias ligadas à saúde pública não atingem... Tudo é incompleto, porque tudo é político e tudo é seletivo. Antigamente, os processos de empobrecimento eram mais lentos, já que o desenvolvimento tecnológico e econômico eram mais lentos. Hoje não. Hoje ele é aceleradíssimo. Acho que está na hora da universidade liderar para valer um processo de discussão sobre o futuro. Se a universidade, que tem o dever de fazer isso por ofício não o fizer, os pobres, que serão em número muito grande, surpreenderão. E é hora também de começar a aceitar que o número de pobres vai aumentar. O grande produto da modernização incompleta, primeiro é que o capital tem que continuar a se reproduzir, porque é o modo de produção vigente no mundo. Para produzir hoje, ele tem que ser altamente tecnificado. E a tecnologia e a técnica são seletivas. Por quê? Porque a toda hora elas se superam. Todo mundo detendo a mesma máquina, você tem que aprimorar a máquina para aumentar a produtividade, e não contratar mais gente para trabalhar. Antigamente você tinha que comprar um torno, mas contratar quatro pessoas para os turnos. Hoje não, você tem que ter só máquinas, e as máquinas concorrem entre si. Então hoje a figura mais importante da fábrica não é o trabalhador, é o engenheiro que projeta máquinas cada vez mais avançadas. Então acho que já estamos vivendo em um outro processo no mundo civilizatório que as universidades precisam acordar e estudar. Porque estamos vivendo um processo gravíssimo no mundo, não só aqui.

 

Quais as possibilidades de reversão desse processo de ter pessoas cada vez mais à margem: os trabalhadores do torno já não têm mais o emprego e nem todos conseguem chegar a ser engenheiros. É um cenário assustador.

Tenho uma idade já bem vivida. No meu tempo, a gente achava que com a industrialização, a invenção de novas máquinas, teríamos muito emprego. Tanto é que as premissas de Chapecó há 50 anos eram essas. Cinquenta anos não é muito tempo, para mim parece que foi ontem que estive aqui, mas é tempo. E o mundo mudou muito. O que tem que mudar é a racionalidade do mundo. O que eu quero dizer: até aqui o que prevalecia para fazer as escolhas era a racionalidade econômica, ou seja, você tem que ter emprego, ter salário para comer. Não vai ter emprego para todo mundo, não haverá. Os espanhóis, que são muito inteligentes, já estão pensando e pesquisando como será a sociedade do ócio. Você não vai mais precisar trabalhar para viver. Então nós saltamos de uma fase da história da humanidade em que o trabalho humano – e hoje o trabalho das máquinas – é indispensável para produzir coisas, para remunerar gente para sobreviver. Só que nós produzimos muito mais do que já produzimos na história da humanidade inteira, não precisamos de trabalhadores, mas de máquinas, e os trabalhadores estão ficando ociosos. Essa ociosidade – como eles são criativos – e estão dentro no mesmo modo de produção, os leva a buscar uma saída, que tem sido a prestação de serviços e o retorno do trabalho criativo, único, realizado por artesão. Como exemplo, a alta-costura italiana, que hoje se difundiu. Você tem produtos diferenciados e de qualidade. A máquina produz muito, mas padrão. A máquina costura muito, mas peças iguaizinhas. Isso se popularizou. Então se passa a ter uma exigência à diversificação dos produtos e à inovação dos trabalhos. Hoje, você já tem nas metrópoles brasileiras uma outra divisão do trabalho. Antes você tinha uma faxineira. Hoje há uma arrumadora de guarda-roupas, uma faxineira, uma que sabe limpar pratarias – só na prestação de serviços domésticos já há uma diversificação enorme. Na prestação de serviços públicos acho que isso também vai acontecer. Acho que os serviços é que tomarão o lugar da produção na criação de trabalho. Agora, nós vamos ter que mudar de mentalidade para conviver com o não trabalho. É um mundo novo, um novo projeto civilizatório que a universidade precisa começar a liderar e a discutir: o que nós vamos fazer com as pessoas que não trabalham.

 

A professora está fazendo um trabalho na Unila sobre os haitianos em Cascavel (PR). Chapecó tem algumas semelhanças com Cascavel, como a maioria das pessoas se declararem branca. Gostaria que falasse um pouco sobre essa pesquisa.

Participei desta pesquisa que é coordenada por um professor sociólogo da Unila, o Zé Renato Martins. E ele me chamou para discutirmos algumas coisas. Eu discuti algumas questões teóricas, também a partir do que o Zé Renato constatou com as pesquisas de campo que ele fez com os estudantes de Graduação deles. Mas o que é terrível de constatar no Brasil é que o país ainda é muito conservador. O Brasil é um país NEGRO. É bom colocar isso na cabeça. Ou, no mínimo, cafuzo, ou, no mínimo, mameluco. Oitenta por cento da nossa população é “parda”, que é um jeito chique de dizer que não é preto. Mas o Sul é muito complicado. Os relatos que o Zé Renato conseguiu e que examinei, da forma de tratamento dos haitianos, tanto dentro da indústria quanto na cidade, é indigno. O Brasil precisa se conscientizar que temos um débito com a história mundial. Nós fomos o país que recebeu o maior contingente de negros escravos e foram eles que construíram o país. Não foram os índios, que foram dizimados, nem os portugueses, nem os italianos, dos quais eu sou descendente, ou o povo da Europa do Leste ou da Europa Central – foram os negros. Que plantaram o café, que plantaram cana, que foram colher pau-brasil, que se meteram no cacau. Se pegar os ciclos como Caio Prado escreveu, eles são os sujeitos da história do Brasil. E nós continuamos a tratar os negros brasileiros ou os negros que vêm para cá dessa forma... eles sofrem muito! O mundo vai ter que aprender. Os ricos serão minoria. No último relatório da ONU sobre urbanização,olha o que acontece: em vinte anos, as dez maiores metrópoles do mundo eram todas ocidentais. Agora, as dez maiores cidades do mundo capitalista são asiáticas, e com predominância de 90 a 95% de pobres, que estão migrando. Há uma movimentação da humanidade como jamais houve na face da Terra. E teremos que aprender a conviver com isso. Ou por bem, ou na marra, porque elas virão.